Parte 1: O frágil e insuficiente modo linear de pensar: a necessidade do Pensamento Complexo
Parte 2: Pensamentos linear e sistêmico
Introdução
Em continuação a parte 1, o objetivo desse texto será apresentar, sucintamente, dois modelos de pensamento: o tradicional pensamento linear e o recente pensamento sistêmico. Ambos, do ponto de vista do pensamento complexo, são insuficientes e reducionistas, porém o pensamento complexo não nega nenhum deles, pelo contrário, reconhece a importância de ambos e vai mais além. Isso será melhor abordado em momento oportuno.
O físico norte americano David Bohm, ao analisar o modo de pensar predominante das pessoas, verifica que temos grandes dificuldades para fazer conexões, imaginar outros contextos e buscar relações, extrapolar os limites do tempo e do espaço presentes e, talvez, o mais ingênuo: quando não conseguimos vislumbrar correlações imediatas e diretas entre os fenômenos em dadas circunstâncias, costumamos nose convencer de que não há relações para teorizar, classificar e ordenar. Decorre daí outro aspecto paralisante do pensar na nossa cultura: a idéia de querer separar o que é teórico e o que é prático (operacional), como se a ação fosse algo que independe do pensamento e vice-versa.
A essa tradicional propensão da nossa cultura na construção do conhecimento, Bohm chamou de “doença do pensamento”; e nada mais “doente” do que o modo unilateral do pensamento linear tomado como única maneira de guiar o pensamento e gerir constelações de conhecimentos.
Pensamento linear
Pensamento linear ou linear-cartesiano é sem dúvidas o mais predominante modo do homem pensar, tem suas raízes em Aristóteles e é “sacralizado” com Descartes na modernidade. Sustentado pela lógica binária, esse tipo de pensamento identifica os opostos de um dado fenômeno e a partir deles desenvolve correlações que irão sustentar a formulação de um dado conhecimento.
Olhando para um dado fenômeno a partir dessa lógica, o objeto de estudo é dividido em várias partes, em seguida é feito uma análise de cada parte em separado. Formula-se várias categorias, grupos e subgrupos para classificação e especializações de cada parte. Fica evidente o quanto é fragmentador e reducionista esse tipo de lógica de pensamento.
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Nesse sentido, o objeto de estudo “desaparece” em partes que obstruem a visão do “todo”. Separando o objeto cada vez mais em partes menores para análise, perdem-se as relações do fenômeno com os vários contextos. Reduz-se o fenômeno a meros conceitos “cristalizantes” como se eles por si só se esclarecessem. Essas construções teóricas, embora possam mudar ao longo do tempo, enquanto não se “descobrem” outras relações, são tidas como universais e válidas em qualquer tempo e espaço.
A medicina, por exemplo, dissecou o corpo humano em sistemas, órgãos, células, genes… e criou um campo de conhecimento altamente classificatório; o olhar do médico tradicional é abordar os sintomas relatados pelo paciente e a partir daí buscar relação com o corpo teórico conceitual já bem aceito pela comunidade médica. Em geral, reduz o indivíduo a um conceito: ele tem câncer! Assim, com uma visão mutilada, o tratamento busca atingir somente as “partes” que estão prejudicadas, desconhecendo a relação da doença com o corpo como um todo: espírito e corpo – divisão, aqui, utilizada apenas para efeito didático. Certamente que isso tem seus benefícios, porém, ressalta-se aqui, o desaparecimento do homem como um ser concreto imerso em um plano simbólico que exerce impacto em todas as suas manifestações.
Evidente que isso não se verifica apenas na medicina, mas sustenta todo campo científico e boa parte da filosofia. Felizmente, dentro de cada campo, começam a se questionar esses pontos de vista já arraigados, de tal forma que o pensamento complexo encontra ai suas brechas para tentar jogar mais luz nos reducionismos científicos – contudo, este não tem a pretensão de ser verdade absoluta, o que seria um contrasenso devido as seus princípios, entre eles o da incerteza que será melhor abordado em momento oportuno.
Pensamento sistêmico
Esse tipo de pensamento é mais recente, surgiu no século XX em contraposição ao reducionismo do pensamento linear, mais precisamente a partir de 1920, na área da biologia com Goldstein e a noção do organismo compreendido como um sistema. Entre os seus vários expoentes, destaque para Fritjof Capra, físico austríaco, contemporâneo, que sistematizou os princípios do pensamento sistêmico em suas obras, entre elas, a principal, denominada “A teia da vida – uma nova compreensão científica dos sistemas vivos” (1996).
O pensamento sistêmico interliga as partes, diminui a distância entre elas e permite pensar o conjunto (sistema) sem perder de vista todos os seus componentes. Admite-se nesse modelo, que na articulação entre as partes, podem surgir novas propriedades (idéias novas), o que seria impossível de visualizar a partir do pensamento linear.
pensamento-sistemicoNesse modelo, busca-se analisar as partes separadamente mas sem perder de vista a sua relação com o todo, além, de conceber que o todo compreende relações que não estão nas partes, e vice-versa. Simplificando: a análise das partes em separado revela um conhecimento; a análise das partes em relação com o todo revela um conhecimento com propriedades novas, e por fim, a compreensão do todo também revela um conhecimento com propriedades novas.
Sistemicamente, o pensamento visa o ordenamento das relações a partir do modelo mecanizante bem característico do pensamento linear. Admitem-se no pensamento sistêmico, novas propriedades que surgem com a totalidade, dentro de uma compreensão que busca dar uma ordenação sistemática entre as variáveis que são aprendidas em um dado fenômeno.
Enquanto o pensamento linear é estrutural, o pensamento sistêmico é não-linear e se baseia no estudo dos padrões, conjuntos e totalidades. Embora inovador em relação à lógica binária, o pensamento sistêmico também incorreu nos seus reducionismos, entre eles, a idéia ilusória de que podemos controlar uma infinidade de variáveis, que os controles e modelagens que exercemos em determinados contextos podem ser automaticamente estendidos para sistemas maiores e mais complexos.
O pensamento sistêmico, com seu grande potencial, infelizmente, transformou-se em mais um modelo reducionista. Criou a ilusão de que o pensar nesses moldes daria conta de captar a totalidade sem perder de vista a ligação entre as partes, e que a partir daí poderia se ter o “poder sobrenatural” de ter um controle absoluto das coisas. Não precisa discorrer muito para dizer o quanto a idéia do homem de exercer controle sobre as coisas, ter previsibilidade e ordenação, de maneira “prepotente”, desconsiderando o incognoscível e a casualidade, tem contribuído para grandes catástrofes na História: o “comunismo” soviético (que não é aquele proposto por Marx) é um exemplo que pode ser visto com um início e fim; o capitalismo também, porém ainda está a nos apresentar seus colapsos: a crise financeira recente que estamos vivendo, que teve seu auge no rombo dos valores imobiliários americanos, é só mais um exemplo do fracasso da crença do homem na previsibilidade das coisas.
Considerações finais
O pensamento complexo não nega, como dito no início, os modelos de pensamentos linear e sistêmico. Ele dá um passo além: inclui a aleatoriedade, a incerteza, a imprevisibilidade e impossibilidade de separação entre sujeito e objeto. Homem, máquina e ambiente estão intrinsecamente interligados.
Admite-se a importância desses dois modelos de pensamento. O homem precisa reduzir o objeto a várias variáveis, concebê-las analiticamente e criticamente, também precisa uni-las e buscar a compreensão da totalidade e das relações entre as partes com o todo e do todo com as partes. É altamente importante que consigamos trabalhar com previsibilidade, ordenação e classificação do mundo, é uma questão até mesmo de sobrevivência. Mas não somente: é necessário abandonar a ilusão de que podemos ter controle e previsibilidade absolutos sobre o mundo; é necessário desautorizar o nosso conhecimento como imponente e tomar consciência que a razão não é uma “lei divina” que irá nos dar todas as soluções – contudo, isso não significa ser irresponsável e se jogar ao acaso, mas clarificar, jogar luz com toda amplitude possível, sabendo que não somos o centro do universo, que podemos falhar e que a razão também desconhece, o que deveria aumentar ainda mais a nossa busca por uma conhecimento complexo e não simplificador.
Com a ilusão do controle o homem tem negado a si mesmo, na medida em que se afasta, coloca-se fora do mundo, como se fosse algo indiferente aos fenômenos. Assim, ele busca pintar o mundo com as cores da causalidade, da linearidade, da ordem e de um “explicacionismo” em termos quantificáveis e classificáveis cada vez mais redutivos e simplificados. Ele crê, dessa maneira, não participar, não interagir com os fenômenos, nessa fuga ele não se vê como responsável pelos colapsos e catástrofes que ocorrem.
É claro que na prática reduzir o número de variáveis é uma postura razoável, sensata e recomendável. Os timoneiros dos navios e os pilotos dos aviões não poderiam controlar suas máquinas sem essa providência, que inclui, por exemplo, tomar conhecimento das previsões meteorológicas. Ainda assim, é irracional e insensato e não recomendável pensar que é possível eliminar todas as variáveis. É certo que os timoneiros e os pilotos pilotam, exercem controle; mas não é menos certo que eles também são pilotados e controlados: pelas variações do tempo, pelas turbulências, pelas calmarias e por todas as demais variáveis da atmosfera e do mar.
(…) É uma propriedade emergente [a pilotagem], que nasce da interação entre as ações do piloto e as variáveis da máquina e do ambiente; entre as intenções e ações do piloto e a incerteza, a aleatoriedade e a imprevisibilidade do mundo. (…) O piloto pilota e é pilotado; o líder lidera e é liderado. (MARIOTTI, Humberto; Pensamento Complexo, 2007)
Na continuação, pretendo apresentar maiores detalhes sobre o pensamento linear, pelo fato de ser um modelo de pensamento bem cristalizado em todos nós e que tampouco temos conhecimento dos seus déficits.