Turma de Licenciatura Plena em Geografia EAD 2013- Uniube

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Geografia Uniube EAD 2013

domingo, 1 de janeiro de 2012

Cidade: Lugar e Geografia da Existência

Cidade: Lugar e Geografia da Existência·
Maria Adélia Aparecida de Souza
Professora Titular
Cidade hoje, sinônimo de medo, de desesperança? As cidades gritam de dor. A democracia urbana está quase morta.
NIETZSCHE parece nos influenciar:
Oh Zaratrusta, eis a grande cidade: você aí não tem nada que procurar mas tem tudo a perder.
...
Aqui todos os grandes sentimentos apodrecem: apenas têm o direito de fazer barulho os pequenos sentimentos ao ruído seco das matracas!
Mas, algo de extremamente grave é sem dúvida nenhuma a insegurança do conhecimento atual sobre a cidade o que, aliás, pode ser colocado como uma das causas principais da crise urbana.
Mas, que contribuição a Geografia traz para a compreensão desse importante fato contemporâneo?
A Geografia urbana precisa se renovar, revisitar seus conceitos, fazer face ao mundo novo. Basta examinar a liberdade com que se confundem, em muitos dos textos produzidos dois conceitos essencialmente distintos: o urbano e a cidade.
Dispensável deixar explicitado aqui a associação conceitual entre cidade e urbano, mas é fundamental distinguí-los: a cidade é o concreto, o conjunto de redes, enfim a materialidade visível do urbano enquanto que este é o abstrato, porém o que dá sentido e natureza a cidade. (SANTOS, 1992: 241). 2
Tenho proposto que, construir cidades é o maior negócio do século. Ousei mesmo elaborar uma pequena teoria para a explicação da sua produção! (SOUZA, 1994). Mas, o nosso desafio é a busca permanente da compreensão do
espaço banal de todos os homens, não perder no urbano e na cidade, a idéia de totalidade.
Como pensar a cidade, em suas múltiplas manifestações e trazer uma contribuição para este importante Simpósio? Como distinguir a cidade nesta contemporaneidade? Muitos estão tranqüilos com as propostas "novas " da
cidade global. Mas ela não é essencialmente geográfica. Certamente os conceitos e teorias disponíveis na geografia não nos conduziriam a isto, se assumida a idéia do espaço como totalidade! Não é sem razão que é a economia quem nos avança esse conceito!
Não citarei aqui, para não omitir nenhum deles, a quantidade de obras, teses, artigos que a geografia brasileira produziu sobre a cidade, o urbano, a urbanização, a rede urbana, o sistema urbano. Contribuições marcantes para a compreensão desses processos e fenômenos em nosso país. Muitos desses autores, personalidades importantes da nossa comunidade, estão aqui presentes.
Mas qual a dificuldade que encontramos? Exatamente aquela de colocar a cidade, em qualquer de suas dimensões, no movimento do mundo. Isto é o que o conceito de cidade global parece responder. Mas ele não se sustenta diante da totalidade, do espaço banal. A cidade global, a cidade mundial é o Estado ou a empresa que dirigem de forma livre a circulação, o trabalho e o mercado.
Nesta perspectiva de raciocínio, julgo pertinente que a geografia urbana reflita sobre a proposta da
epistemologia dos confins (TAGLIAGAMBE, 1997), da nova racionalidade, da noção de limite.
O que isto significa? Inspirando-se no filósofo americano Charles Sanders Peirce que desde 1868 já estabelecia uma profunda relação e um enorme nexo entre a idéia de
verdade e aquela de comunidade. Isto significa que hoje, mais 3
do que nunca (e isto é revelado pela cidade), temos necessariamente de nos confrontar com o problema da construção de uma racionalidade coletiva, um pacto novo de ampliação de valores, ideais, normas e critérios comuns aos indivíduos que pertençam a uma determinada comunidade. Para o autor, o indivíduo racional não passa de uma ficção, afirmação que faz diante de uma infinidade de evidências empíricas. Uma comunidade pode conseguir bons resultados ativando um efetivo processo de intercâmbio entre os indivíduos que a compõem. Esta é uma idéia que se opõe fundamentalmente àquela de sujeito solitário, que predomina na compreensão do processo urbano e da vida na cidade. Esse paradoxo entre a solidão individual e a comunidade, revela um aspecto interessante a ser retomado no estudo da cidade. Esta questão epistemológica, no limite de uma racionalidade que se esgota, face as características do mundo novo é revelada no espaço, pelas normas, objetos, ritmos. Projetos imensos para uma nova geografia urbana que se impõe nesta idéia de uma epistemologia dos confins. Este período histórico revoluciona a velha noção de realidade: a ciência sempre vem precisando enfrentar fenômenos que se encontram em
zonas de confins onde forma e estrutura podem se dissolver. O desafio, nesta epistemologia que se impõe é aquele de pensar forma e evento, tradicionalmente vistos como separados e contrapostos. Aliás, SANTOS (1996) já nos introduz neste tipo de reflexão, discutindo a natureza do espaço. Um evento é o resultado de um feixe de vetores, conduzido por um processo, levando uma nova função ao meio preexistente. Mas o evento só é identificável quando ele é percebido, isto é, quando se perfaz e se completa. E o evento somente se completa quando integrado no meio. Somente aí há o evento. (idem: 76-77).
O que é a cidade?
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Tratarei nesta conferência da cidade, uma dimensão importante do urbano.
A cidade é uma obra humana. Ela é um mundo de objetos, produzidos segundo procedimentos, determinados por materialidades e regidos por intencionalidades precisas. A cidade é uma intencionalidade. Isto, portanto, quer dizer que a cidade é uma negação da natureza, daquilo que é físico.
Isto se dá pela técnica. A técnica é antes de tudo um saber prático, que advém do trabalho. Aliás,
tekné em grego, significa trabalho. A cidade é o lugar da acumulação técnica.
Aí surge um paradoxo interessante de ser estudado: lugar da coexistência e da liberdade, a cidade é ao mesmo tempo, pelo fato técnico, o lugar da vigilância (as máquinas fotográficas do trânsito), da identificação, das redes (a telemática e as redes de fibras óticas e o controle do território, que estudam meus alunos Ricardo Castilho e Rubens de Toledo Junior), da exclusão, da disciplina (os panópticos eletrônicos, que estuda meu aluno Renato Balbin Nunes e das normas e do direito na cidade, que estuda meu aluno Ricardo Mendes).
A prevalência da técnica deshistoriciza e desterritorializa a cidade. As maravilhosas pranchas de Jürg Muller intituladas
Urban Changing demonstram claramente isto.
Mas, entre a técnica que dá ritmo ao tempo e acelera a duração e o fato cultural se interpõe o sujeito, corpo e alma, imaginação sensível. A obra de Walter Benjamin nos mostra as diversas possibilidades oferecidas pela cidade: a possibilidade técnica e a sensibilidade.
De qualquer maneira não há como não considerar a cidade como lugar da co-presença, lugar da coexistência (SOUZA, 1997), escancaradamente manifesta pelo espaço geográfico, pelas geografias desiguais da existência expostas na cidade. Na cidade, o espaço banal é assintosamente aviltado. 5
A cidade é para HEGEL uma etapa histórica, constituindo, depois da organização da família, o momento da sociedade civil, onde se afrontam os interesses egoístas, mas onde opera uma racionalidade anunciando a vinda do Estado como idéia de moralidade.
Não apenas por abrigar a maior população do planeta é que a cidade, lugar desta geografia da existência faz sentido, mas pelo que ela efetivamente significa na realização do projeto humano nestes últimos séculos e, muito especialmente neste século XX.
O conhecimento sobre a cidade.
O conhecimento sobre a cidade está em crise. O balanço desse conhecimento é decepcionante.
A sociologia contemporânea ainda elabora a partir de construções conceituais velhas, que não mais se ajustam ao mundo novo. Muito se produz, porém muito pouco é acrescentado do ponto de vista sociológico, para o conhecimento de um mundo mutante. Raros são os sociólogos que se aventuram a uma explicação contemporânea.
A fragilidade do pensamento econômico é também enorme. Seu olhar vê a cidade apenas como um elemento constituinte de uma rede utilizável, ignorando completamente as suas formas, sua complexidade, seus habitantes. Para a economia não existem cidadãos, mas consumidores.
Por outro lado, o pensamento social, negligencia o espaço ou mesmo a cidade: limita seu campo de intervenção à distribuição da renda, ao trabalho, ao tempo. Alguns ainda se incomodam com a pobreza pois ela pode ser perigosa para a
ordem urbana.
A ciência política, por seu lado, concentrando-se nos fenômenos regionais ou nas questões internacionais, negligência a cidade. E isto vem de longe... Para 6
MACHIAVEL, a cidade são homens a serem governados, arsenais a serem lotados, muralhas a serem fortificadas e defendidas em relação a não importa que instrumento do poder.
Eis o que explica a fragilidade das cidades, todas vítimas de agressões econômicas e financeiras, todas ameaçadas pela evolução das técnicas, todas feridas pelas práticas arquitetônicas e opções de um urbanismo servil mais ao lucro do que a cultura.
(ANSAY, Pierre e SCHOONBRODT, 1989 :16).
Esta ausência da cidade se descobre, ainda, na ecologia e na filosofia. Ferindo a ecologia, a cidade ainda é assumida como o lugar e a causa de um super consumo de energia e do desenvolvimento de uma agricultura abusiva em agrotóxicos. A cidade é sempre vista como um fracasso ecológico. O agravante ainda desta percepção está na ideologia do
small is beatifull, estando portanto a grande cidade fatalmente condenada.
A filosofia por seu lado, não desenvolve conceitos diferentes daqueles da sociologia ou da psicologia.
A filosofia da cidade está por ser construída se a cidade - antes intuitivamente - aparece como necessidade. (idem: 17).
Quem pode fazer crer que a cidade é uma necessidade do homem enquanto ser individual, autônomo, enquanto ser social? Qual é o sentido da cidade, além das respostas que ela pode trazer às questões demográficas (como alojar de maneira mais eficaz uma população crescente) ou econômicas (como assegurar de uma outra maneira o crescimento da indústria de massa e as vendas?).
(Ibidem: 17).
Aqui reside um paradoxo extremamente interessante de ser examinado: a liberdade que oferece a cidade, permite a todo instante, criar e recriar laços sociais, abandonar traços culturais velhos e assumir conteúdos culturais novos.
A Cidade e a Liberdade
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Para WEBER, a grande cidade moderna é o lugar e o momento do encontro entre técnica e cultura.
No entanto, a cidade gera um processo, um grau de liberdade incompatível com o nível de manipulação que a sociedade industrial e informacional contemporânea precisam para sobreviver. E, é por isso que essa sociedade destrói a cidade. Mas a cidade não produz apenas a liberdade. Ela instaura redes de ação e de resistência contra a falta de liberdade, contra a desigualdade. O espaço na cidade denuncia escancaradamente esses processos. O espaço é mesmo condição desses processos. E, são exatamente essas redes que colocam em xeque todos os mecanismos de rigidez das hierarquias sociais, os processos de manipulação cultural, gerando fantásticos processos de solidariedade, de igualdade, de fraternidade, de convivialidade. Vá a uma praça pública a uma rua da periferia das grandes cidades brasileiras e descubra isto !
Aliás, a cidade de Kant é concebida como um equipamento coletivo para a humanidade livre!
Mas o embate com uma sociedade fundada no consumo, resistente a todo e qualquer processo de mudança, a toda pressão individual e solitária é o emblema deste nosso tempo. E este é o trunfo dessa Geografia da existência. Nesta sociedade apenas a ação coletiva pode ter êxito. Os múltiplos exemplos dados pelos pobres que habitam as grandes cidades são extremamente elucidativos. É preciso estudá-los.
No entanto é preciso muita atenção a um outro paradoxo: a cidade, sendo o lugar por excelência da liberdade individual parece ser incompatível com a prática da soberania popular: esta, suprimindo a anterior pode tender a um modelo totalitário. Mas, o modelo totalitário é incompatível com a cidade - lugar da diversidade. WITTGENSTEIN (1961) aprofundou este aspecto com seus estudos, de extrema riqueza, sobre jogos de linguagem. Perguntando a um urbanista e a um poeta, para que falassem sobre a cidade diz o autor que o 8
primeiro faz um discurso sobre planos urbanísticos e o segundo discorrerá sobre suas impressões após um belo passeio pelos lugares da cidade. Eis a diversidade na cidade e é ela quem define a quotidianeidade. Com seus estudos, esse autor renovou os estudos de filosofia sobre a cidade.
A Geografia da Existência.
Esta Geografia da Existência que defendo aqui está baseada na crença de que é a cidade, exclusivamente, quem pode gerar formas significantes da sociedade civil. A cidade é, portanto, a condição espacial da realização dos valores de liberdade, de igualdade, de fraternidade, de solidariedade. A cidade produz o estímulo intelectual. A cidade produz a inteligência.
Esta Geografia é muito inspirada em SARTRE que, muito embora tenha produzido sua obra centrada no mundo vivido urbano, ele nada fala sobre a cidade. Pode-se, no entanto, na
Crítica a Razão Dialética interpretar a cidade como a totalização operada em torno da questão da sobrevivência. Para este autor a existência é sinônimo de liberdade, na sua perspectiva filosófica que funda o existencialismo.
A cidade é uma relação complexa que ainda precisa ser definida, entre as formas físicas (seu sítio, seu traçado, o gabarito das construções, seu tamanho) e as relações das forças que atravessam sua vida interior e que fixam as relações com o exterior; estas relações é quem definem as relações de dominação e de sujeição. São elas que definem os limites da existência ou não de urbanidade, atributo quase perdido da vida citadina contemporânea. É o desequilíbrio dessas relações que implicam na perda de urbanidade.
Por isso a dimensão mais importante da natureza da cidade é aquela da coexistência. E isto significa, desde logo, assumir a cidade como o lugar do
debate. É neste sentido que o urbanismo racional-funcionalista que impregnou 9
as cidades deste século, falhou: ao separar as funções da cidade por zona, feriu este princípio da coexistência que é
o debate, destruindo, portanto a urbanidade.
Reconstruir a urbanidade é antes de tudo assumir a complexidade gerada pela coexistência de grupos, de culturas, de línguas, de religiões, de idades, de atividades. Esta coexistência é o fundamento da inteligência e, por conseguinte da liberdade. O espaço é o conteúdo desse choque permanente da diversidade.
A cidade é copresença densa do complexo tecnico-científico, das instâncias e dos campos da cultura, da política e da produção econômica.
A cidade é o lugar do encontro da diferença, da liberdade, da igualdade.
A cidade é o lugar, a geografia da existência.
Mas, como dizia SARTRE, as cidades da América não são feitas para envelhecer. Será essa a nossa chance, a nossa possibilidade de mudança ?
Estará nesse mundo mutante o fundamento da nossa utopia ?
Isto é o que nos estimula a prosseguir.
Muito obrigada.
BIBLIOGRAFIA
ANSAY, Pierre e SCHOONBRODT.
PENSER LA VILLE. Choix de Textes Philosophiques. Bruxelas. AAM Editions, 1989.
SANTOS, Milton.
A Cidade e o Urbano como Espaço-Tempo. CIDADE & HISTÓRIA - Modernização das Cidades Brasileiras nos Séculos XIX e XX. UFBA - FAU/MAU. Salvador, 1992: 241-244.
SANTOS, Milton.
A NATUREZA DO ESPAÇO. Técnica e Tempo. Razão e emoção. São Paulo. HUCITEC, 1996.
SOUZA, Maria Adélia Aparecida de.
A IDENTIDADE DA METRÓPOLE. O Processo de Verticalização em São Paulo. São Paulo. HUCITEC, 1994. 10
SOUZA, Maria Adélia Aparecida.
O LUGAR DE TODO O MUNDO - A Geografia da Solidariedade. Texto apresentado em Seminário na Bahia, em junho de 1997, organizado pelo Programa de Pós-Graduação e pelo Departamento de Geografia da UFBA.
TAGLIAGAMBE, Silvano.
EPISTEMOLOGIA DEL CONFINE. Col. Teoria. Milão. Ed. Il Saggiatore, 1997.
WITTGENSTEIN, Ludwig.
Investigations Philosophiques .Ed. Gallimard. Paris, 1961.


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