Até o presente, a organização curricular do Ensino Médio brasileiro teve como referência
mais importante os requerimentos do exame de ingresso à educação superior.
A razão disso, fartamente conhecida e documentada, pode ser resumida muito
simplesmente: num sistema educacional em que poucos conseguem vencer a barreira da
escola obrigatória, os que chegam ao Ensino Médio destinam-se, em sua maioria, aos estudos
superiores para terminar sua formação pessoal e profissional. Mas essa situação está
mudando e vai mudar ainda mais significativamente nos próximos anos.
A demanda por ascender a patamares mais avançados do sistema de ensino é visível na
sociedade brasileira. Essa ampliação de aspirações decorre não apenas da urbanização e
modernização conseqüentes do crescimento econômico, mas também de uma crescente
valorização da educação como estratégia de melhoria de vida e empregabilidade. Dessa
forma, aquilo que no plano legal foi durante décadas estabelecido como obrigação, passa a
integrar, no plano político, o conjunto de direitos da cidadania.
O aumento ainda lento, porém contínuo, dos que conseguem concluir a escola obrigatória,
associado à tendência para diminuir a idade dos concluintes, vai permitir a um número
crescente de jovens ambicionar uma carreira educacional mais longa. Por outro lado, a
demanda por Ensino Médio vai também partir de segmentos já inseridos no mercado de
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trabalho que aspiram a melhoria salarial e social e precisam dominar habilidades que
permitam assimilar e utilizar produtivamente recursos tecnológicos novos e em acelerada
transformação.
No primeiro caso, são jovens que aspiram a melhores padrões de vida e de emprego. No
segundo, são adultos ou jovens adultos, via de regra mais pobres e com vida escolar mais
acidentada. Estudantes que aspiram a trabalhar, trabalhadores que precisam estudar, a
clientela do Ensino Médio tende a tornar-se mais heterogênea, tanto etária quanto sócioeconomicamente,
pela incorporação crescente de jovens e jovens adultos originários de
grupos sociais, até o presente, sub-representados nessa etapa da escolaridade.
As estatísticas recentes confirmam essa tendência. Desde meados dos anos 80, foi no
Ensino Médio que se observou o maior crescimento de matrículas no país. De 1985 a 1994,
esse crescimento foi em média de mais de 100%, enquanto no Ensino Fundamental foi de
30%.
A hipótese de que a expansão quantitativa vem ocorrendo pela incorporação de grupos
sociais até então excluídos da continuidade de estudos após o fundamental fica reforçada
quando se observa o padrão de crescimento da matrícula: concentrado nas redes públicas e,
nestas, predominantemente nos turnos noturnos, que representaram 68% do aumento total.
No mesmo período (85 a 94) a matrícula privada, que na década anterior havia crescido 33%,
apresentou um aumento de apenas 21%
5 .
Se o aumento observado da matrícula já preocupa os sistemas de ensino, a situação é
muito mais grave quando se considera a demanda potencial. O Brasil continua apresentando a
insignificante taxa líquida de 25% de escolaridade da população de 15 a 17/18 anos no
Ensino Médio. Outros tantos dessa faixa etária, embora no sistema educacional, ainda estão
presos na armadilha de repetência e do atraso escolar do Ensino Fundamental
6 .
Considerando que o egresso do Ensino Fundamental tem permanecido, em média, onze e
não oito anos na escola, a correção do fluxo de alunos desse nível, se bem sucedida, vai
colocar às portas do Ensino Médio um grande número de jovens cuja expectativa de
permanência no sistema já ultrapassa os oito anos de escolaridade obrigatória.
A expectativa de crescimento do Ensino Médio é ainda reforçada pelo fenômeno chamado
“onda de adolescentes”, identificado em recentes estudos demográficos:
De fato, enquanto a
geração dos adolescentes de 1990 era numericamente superior à geração de adolescentes de
1980 em 1 milhão de pessoas, as gerações de adolescentes em 1995 e 2000 serão maiores do
que as gerações de 1985 e 1990 em 2,3 e 2,8 milhões de pessoas, respectivamente. No ano
2005, este incremento cairá para o nível de 500 mil pessoas, caracterizando o fim desta onda
de adolescentes
7 .
Mesmo considerando o gradativo declínio do número de adolescentes, caracterizado pela
mencionada “onda”, os números absolutos são enormes e dão uma idéia mais precisa do
desafio educacional que o País enfrentará. Pela contagem da população realizada em 1996
(IBGE), em 1999 o Brasil terá 14.300.448 pessoas com idade entre 15 e 18 anos. Esse
número cairá para a casa dos 13 milhões a partir de 2001, e para a casa dos 12 milhões a
partir de 2007. No início da segunda década do próximo milênio (2012), depois do fenômeno
Contam-se portanto em números de oito dígitos os cidadãos e cidadãs brasileiros a quem
será preciso oferecer alternativas de educação e preparação profissional para facilitar suas
escolhas de trabalho, de normas de convivência, de formas de participação na sociedade. E
quanto mais melhorar o desempenho do Ensino Fundamental, mais esse desafio concentrarse-
á no Ensino Médio.
Essa tendência já pode ser observada, conforme prossegue o estudo da Fundação SEADE:
Em 1992, cerca de 64% dos adolescentes já estavam fora da escola; em 1995, apenas três
anos depois, este percentual já havia decrescido para algo em torno de 42%. Como
conseqüência da maior permanência no sistema escolar, cresce de forma expressiva a
proporção de adolescentes que avançam além dos quatro primeiros anos. O mesmo se dá, de
alguma maneira, em relação à conclusão do primeiro grau e do segundo grau.
Finalmente, como mostra o mencionado estudo, a onda de adolescentes acontece num
momento de escassas oportunidades de trabalho e crescente competitividade pelos postos
existentes. Na verdade, os dois fenômenos somados – escassez de emprego e aumento
geracional de jovens – respondem pela expressiva diminuição, na população de adolescentes,
da porcentagem dos que já fazem parte da população economicamente ativa. Este é um
indicador a mais de que essa população vai tentar permanecer mais tempo no sistema de
ensino, na expectativa de receber o preparo necessário para conseguir um emprego.
A capacidade do País para atender essa demanda é muito limitada. Menos de 50% de toda
a população de 15 a 17 anos está matriculada na escola e, destes, metade ainda está no Ensino
Fundamental. Segundo os dados da UNESCO
8 , o Brasil tem uma das mais baixas taxas de
matrícula bruta nessa faixa etária, comparada à de vários países da América Latina, para não
dizer da Europa, América do Norte ou Ásia.
No continente latino-americano, os países que têm uma taxa bruta de matrícula da
população de 14 a 17 anos menor que a brasileira concentram-se na América Central: Costa
Rica, Nicarágua, República Dominicana, Honduras, Haiti, El Salvador e Guatemala. Entre os
que, desde 95, ultrapassavam os 50%, estão Peru, Colômbia, México e Equador. Dos
parceiros do Mercosul, apenas Paraguai e Bolívia têm situação pior: 37% e 40%,
respectivamente. Argentina (76%), Chile (73%) e Uruguai (81%) estão melhores que os
“tigres asiáticos” (72%) e caminham para alcançar a média dos países desenvolvidos (90%).
Não é apenas em virtude de seu tamanho e complexidade, nem mesmo dos muitos
equívocos educacionais cometidos no passado, que um país, cuja economia concorre em
tamanho com o Canadá, apresenta indicadores de cobertura do Ensino Médio inferiores aos
da Argentina, Colômbia, Chile, Uruguai, México, Equador e Peru.
Esse desequilíbrio se explica também por décadas de crescimento econômico excludente,
que aprofundou a fratura social e produziu a pior distribuição de renda do mundo. A esse
padrão de crescimento associa-se uma desigualdade educacional que transformou em
privilégio o acesso a um nível de ensino cuja universalização é hoje considerada estratégica
para a competitividade econômica e o exercício da cidadania.
Até meados deste século o ponto de ruptura do sistema educacional brasileiro situou-se, na
zona rural, no acesso à escola obrigatória, e, nas zonas urbanas, na passagem entre o antigo
primário e o secundário, ritualizada pelo exame de admissão. Com a quase universalização do
Ensino Fundamental de oito anos, a ruptura passou a expressar-se de outras formas: por
diferenciação de qualidade, dentro do Ensino Fundamental, atestada pelas altíssimas taxas de
repetência e evasão; e, mais recentemente, pela existência de uma nova barreira de acesso,
agora no limiar e dentro do Ensino Médio.
A falta de vagas no Ensino Médio público; a segmentação por qualidade, aguda no setor
privado, mas presente também no público; o aumento da repetência e da evasão que estão
acompanhando o crescimento da matrícula gratuita do Ensino Médio
9 alertam para o fato de
que a extensão desse ensino a um número maior e muito mais diversificado de alunos será
uma tarefa tecnicamente complexa e politicamente conflitiva.
Pelo caráter que assumiu na história educacional de quase todos os países, a educação
média é particularmente vulnerável à desigualdade social. Enquanto a finalidade do Ensino
Fundamental nunca está em questão, no Ensino Médio se dá uma disputa permanente entre
orientações mais profissionalizantes ou mais acadêmicas, entre objetivos humanistas e
econômicos. Essa tensão de finalidades expressa-se em privilégios e exclusões quando, como
ocorre no caso brasileiro, a origem social é o fator mais forte na determinação de quais têm
acesso à educação média e à qual modalidade se destinam.
Analisando essa questão, Cury
10 afirma, sobre esse nível de ensino: Expressando um
momento em que se cruzariam idade, competência, mercado de trabalho e proximidade da
maioridade civil, expõe um nó das relações sociais no Brasil manifestando seu caráter dual e
elitista, através mesmo das funções que lhe são historicamente atribuídas: a função
formativa, a propedêutica e a profissionalizante.
E prossegue:
[…] a propedêutica de elites cuja extração se dá nos estratos superiores de
uma sociedade agrária e hierarquizada, incontestavelmente deixou seqüelas (talvez mais do
que isso) até hoje. A função propedêutica, dentro deste modelo, tem um nítido sentido elitista
e de privilégio, com destinação social explícita. E esta associação entre propedêutica e elite
ganhará sua expressão doutrinária máxima tanto na Constituição de 1937 como na
Exposição de Motivos que acompanha a reforma do ensino secundário do Decreto-Lei nº
4.244/42.
A Constituição de 1937 é clara no seu Artigo 129.
Cita o autor: O ensino pré-vocacional e
profissional, destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro
dever do Estado.
Já a exposição de motivos de Capanema em 1942,
ainda segundo Cury, é conseqüente
com este princípio discriminatório ao dizer que, “além da formação da consciência
patriótica, o ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras,
isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e
da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso
infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo.”
É, portanto, do Ensino Médio que se vem cobrando uma definição sobre o destino social
dos alunos, cobrança esta que ficou clara com a política, afinal fracassada, de
profissionalização universal criada pela Lei nº 5.692/71
11. E nunca é demais lembrar que os
concluintes da escola obrigatória ainda constituem uma minoria selecionada de sobreviventes
do Ensino Fundamental. Com a melhoria deste último, espera-se que a maioria consiga
cumprir as oito séries da escola obrigatória. A universalização do Ensino Médio, além de
mandamento legal, será assim uma demanda social concreta. É tempo de pensar na escola
média a ser oferecida a essa população.
Os finais dos anos 90 inspiram momentos de rara lucidez, como o que teve Ítalo Calvino
quando afirmou que só aquilo que formos capazes de construir neste milênio poderemos levar
para o próximo
12 . O Brasil não tem para legar ao século XXI uma tradição consolidada de
educação média democrática de qualidade. Mas tem o legado valioso da lição aprendida com
a expansão do Ensino Fundamental: não é possível oferecer a todos uma escola programada
para excluir a maioria, sem aprofundar a desigualdade, porque, em educação escolar, a
superação de exclusões seculares requer ir além do “fazer mais do mesmo”.
Neste sentido, vale a pena citar a mensagem que o mencionado estudo demográfico da
Fundação SEADE envia aos que labutam na educação, após analisar dados etários e de
trabalho e escolaridade na população adolescente:
Já na antevéspera do ano 2000 – após
sofrida trajetória que, certamente, inclui mais de uma repetência e períodos intermitentes
fora da escola – os filhos das famílias mais pobres deste país estão finalmente descobrindo a
importância da escola, indo para além dos quatro primeiros anos iniciais, mesmo nos
Estados mais atrasados, e já batendo nas portas do ensino secundário nos Estados do sul.
Não temos mais o direito de repetir erros agora, quando estamos repensando a educação
deste país e nos preparando para a árdua luta da competição internacional. É fundamental
criar todo tipo de incentivo e retirar todo tipo de obstáculo para que os jovens permaneçam
no sistema escolar. As questões que envolvem o adolescente de hoje não podem mais ser
pensadas fora das relações mais ou menos tensas com o mundo do trabalho, fora de sua
condição de grande consumidor potencial de bens e serviços em uma sociedade de massas,
onde a escolarização não se limita mais aos jovens e o trabalho não é só de adultos, ou fora
de suas relações de autonomia ou dependência para com a ordem jurídica e política
13 .
O momento que vive a educação brasileira nunca foi tão propício para pensar a situação de
nossa juventude numa perspectiva mais ampla do que a de um destino dual. A nação anseia
por superar privilégios, entre eles os educacionais, a economia demanda recursos humanos
mais qualificados. Esta é uma oportunidade histórica para mobilizar recursos, inventividade e
compromisso na criação de formas de organização institucional, curricular e pedagógica que
superem o status de privilégio que o ensino médio ainda tem no Brasil, para atender, com
qualidade, clientelas de origens, destinos sociais e aspirações muito diferenciadas.
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